Nascida e criada em Portugal. Já morei na Polónia, no Brasil, na República Checa e agora é a Suécia que me acolhe.
O meu blogue, tal como o meu cérebro, é uma mistura de línguas. Bem vindos!

Born and raised Portuguese. I have lived in Poland, Brazil, Czech Republic and now I'm in the beautiful Sweden.
My blog, just like my brain, is a blend of languages. Welcome!

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Stories of my world #11

Não me lembro do dia em que te conheci, mas lembro-me de muitos outros depois. Fecho os olhos e vejo-te naquela cozinha escura em frente à lareira, que crepita alegremente e emana aquele calor bom e único, que nos aquece por dentro e por fora. Nessa mesma minúscula e escura cozinha estou também eu e a minha irmã. Estamos nós três sentados, tu na tua cadeira e nós as duas nos banquinhos de madeira de três pernas. No centro está aquele banco mais alto, cujo tampo serve de mesa enquanto jogamos às cartas, com aquele baralho espanhol de figuras estranhas. Jogamos ao peixinho e ao burro de contar, os únicos jogos que a minha irmã sabe jogar na sua tenra idade. Nunca fazemos batotice. Nunca a deixamos ganhar porque ela é pequena. Umas vezes perde-se, outras ganha-se. Como na vida.
Abro os olhos e regresso à realidade. A lareira está apagada e os joelhos doem-me quando me sento nos banquinhos. As cartas estão gastas e o baralho incompleto. A minha irmã já sabe muitas outras coisas, inclusive que tu não te levantavas cedo na manhã de Natal para ver as botas ao Pai Natal, enquanto este escapava apressadamente pela chaminé acima. 

A realidade pesa e magoa e volto a fechar os olhos. Volto novamente à tua cozinha. Desta vez estás a assar castanhas, naquele assador velho e preto, que nos pinta as mãos e a roupa. Expectantes ouvimos o som das castanhas a estalar e sentimos-lhe o cheiro, enquanto nos vai crescendo água na boca, na antecipação pelo sabor que sabemos que vamos sentir daí a momentos. A espera não é longa mas parece infinita. Para nos acalmares um pouco o desejo, tiras do assador duas castanhas ainda mal assadas, que em vez de nos sossegarem só nos aguçam ainda mais o apetite. 
Volto a abrir os olhos. É Abril e não há castanhas. Nem mesmo aquelas que guardavas meses num sitio especial para que sobrevivessem até eu chegar do estrangeiro. Mesmo que fosse Outono também não ia haver castanhas. Não na tua cozinha. Não assadas pelas tuas mãos. Pelo teu assador.

Também não voltaremos a presenciar todas as outras coisas, como por exemplo os teus talentos de encantador de galinhas, que trazias atrás de ti sempre tão amestradas. Ou de encantador de crianças, com as tuas lições da escola na ponta da língua. Ou de encantador de pessoas, com as tuas histórias de uma vida de outrora, mais dura e difícil, mas mais jovem e feliz.
Eras mágico. Sempre o foste para nós, mesmo depois de crescemos. Continuas a sê-lo mesmo um ano depois de nos teres deixado. Continuarás sempre a sê-lo enquanto viveres nas nossas memórias. Por toda a eternidade portanto, o que parece uma imensidão de tempo para viver sem ti.
Tudo continua. Nada é igual.

*Texto dedicado ao meu avô.

(click for English)


--------------------------------------------------------------------------------------------------------------

I do not remember the day I met you, but I remember many others after that. I close my eyes and I can see you in that dark kitchen. The fireplace happily crackles and emanates that good and unique warmth, that warms us both inside and out. In that same tiny and dark kitchen, I see also me and my sister. The three of us are seating, you in your chair and the two of us on the three-legged small wooden stools. In the center is that tallest bench, functioning as a table while we play cards, with that Spanish deck full of strange figures. We played peixinho and counting-donkey, the only games my little sister is able to play at her young age. We never cheat. We never let her win because she's small. Sometimes we loose, others are won. Just like in life.
I open my eyes and return to reality. The fireplace is out and my knees ache when I sit on the stools. The cards are worn out and the deck is incomplete. My sister knows now a lot more than back then, including that you did not wake up early on Christmas morning to see Santa's boots as he hurried out the chimney.

Reality weighs and hurts and I close my eyes again. I'm back in your kitchen. This time you're roasting chestnuts in that old black rotisserie that paints our hands and clothes black. Full of expectation, we hear the sound of the chestnuts popping and we can smell it. At the same time our mouths water, anticipating the flavours we are about to feel in a few moments. The wait is not too long but it seems infinite. To calm our desire a little, you remove two badly roasted chestnuts from the fire for us. We eat those in a gulp but they only sharpen our appetite even more.
I open my eyes again. It's April and there are no chestnuts. Not even those you used to keep in a special place for months, until I came back from abroad. Even if it was Autumn, there would be no chestnuts either. Not in your kitchen. Not roasted by your hands. Not from your rotisserie.

Nor will we ever witness again all the other things, such as your lovely talent with chickens, which followed you in a trail behind you. Or as a child charmer, with your school lessons from the 30's ready on the tip of your tongue. Or as a people charmer, with your stories of a life of yesterday, harder and tougher, but younger and happier.
You were magic. You have always been to us, even after we grew up. You are still magic one year after you left us. You will continue to be as long as you live in our memories. Hence, for all eternity, which seems an immense amount of time to live without you.
Everything continues. Nothing is the same.


*Dedicated to my grandfather.

7 comentários:

  1. Um belo texto Sara para comemorar o avo. Nao cresci com avos e sinto falta dessa etapa na minha vida.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada Sami. Ouvi esta semana alguém dizer que os avós são pais, mas com açúcar!

      Eliminar
  2. Os avós são das coisas mais bonitas que podemos ter. Adorei os meus avós, sinto-os comigo e ainda falo com eles apesar de serem estrelinhas há muitos anos! Adorei o texto.

    ResponderEliminar
  3. Tudo bem consigo e familia Sueca? Beijinhos

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, está tudo bem. Nós não moramos em Estocolmo e ninguém estava lá de visita. Obrigada pela preocupação. Beijinhos

      Eliminar

Adorava saber das vossas voltas. Escrevam!
I would love to hear more about you. Feel free to comment!